Opiniões: Cuidar da saúde mental com práticas de Mindfulness

Psicóloga especialista em Mindfulness comenta, em entrevista, como as práticas de Mindfulness poderiam ser aliadas para diminuir sensações de ansiedade, frustração, isolamento e separação que alguns momentos, como o que vivemos atualmente, podem nos provocar.

O Brasil tem atualmente o segundo maior número de casos de COVID-19. Além das incertezas provocadas pela pandemia, os brasileiros estão lidando também com conflitos políticos e inseguranças sobre a gestão da crise sanitária.

Este momento de incertezas pode provocar medo, ansiedade e angústia. Para buscar alternativas que possam cuidar da saúde mental e do bem-estar, entrevistamos a psicóloga brasileira Cristina Gandra, professora certificada de Mindfulness, e coordenadora geral do Núcleo de Mindfulness – NUMI.

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Cristina Gandra, psicóloga certificada de Mindfulness

 

Durante a pandemia, diversos organismos internacionais vêm ressaltando a importância dos cuidados para a saúde mental. A prática de Mindfulness pode ser visto como um aliada neste momento?

Certamente. Mindfulness, que pode ser traduzido como consciência plena, e que significa, segundo Jon Kabat-Zinn, considerado o precursor do mindfulness laico no ocidente, a consciência que emerge ao se prestar atenção intencionalmente ao momento presente de maneira aberta e sem julgamentos, é algo que podemos cultivar nos diversos momentos da vida, incluindo aqueles difíceis, desafiadores ou desagradáveis.

Com a prática, podemos colher benefícios de maior saúde mental e sensação de bem-estar, além da melhoria da qualidade das relações e do desenvolvimento de uma vida mais engajada no mundo e mais consciente de maneira geral.

A prática de mindfulness nos convida a estar diante das experiências do presente de maneira mais consciente e aberta. Desta forma, vamos nos tornando menos reativos e mais assertivos no modo como respondemos aos desafios que nos acontecem, diminuindo o nível de ruminação e sofrimento mental que usualmente acrescentamos às experiências dolorosas, quando estamos inconscientes ou presos em padrões automáticos de reação.

Mindfulness também nos convida a ampliarmos o nosso olhar, muitas vezes restrito unicamente ao sofrimento que sentimos no momento. Quando estamos mais conscientes, aprendemos a ver as coisas boas, belas e saudáveis que já nos acontecem e pelas quais podemos ser gratos em cada momento.

A pandemia nos trouxe o medo de perder pessoas que amamos, o perigo do adoecimento e a crise financeira mundial, mas também possibilitou a alguns de nós estar em casa com a família, desfrutar de mais tempo com as pessoas que amamos, cozinhar e comer com elas. E, se temos esse privilégio, podemos aprofundar esses momentos de alegria e amor simplesmente estando presentes neles. E fazendo isso, aumentamos nossa saúde mental e sensação de bem-estar.

Aprender a lidar com a impermanência como um fato da vida, soltando a necessidade de controle, é algo que diminui a ansiedade e a frustração, além de outros tantos benefícios para a vida de maneira geral. Já a consciência da interdependência nos torna mais conscientes do fato de que todos os seres estão juntos e interligados. Isso desenvolve, por um lado, maior responsabilização e engajamento no mundo e nas relações e, por outro, diminui a sensação de isolamento e separação, que nos causa grande aflição mental.

Para conseguir um efeito terapêutico durante o confinamento, como deve ser feita a prática?

Trazendo um pouco mais de clareza para o contexto da consciência plena, é importante dizer que mindfulness é terapêutico, mas não é terapia. O que isso significa? Que nos grupos de mindfulness, o processo terapêutico, ou seja, o desenvolvimento da tomada de consciência, que possibilita maior bem-estar e saúde mental, advém da observação do funcionamento mental e da sua relação com o corpo e com o ambiente, e não da investigação sobre o conteúdo da história individual de cada um, como acontece numa sessão de psicoterapia.

Além disso, é notório o fato de que há uma rápida expansão de mindfulness nos últimos tempos no ocidente. Por um lado, isso é muito positivo, pois significa que práticas e conceitos, antes fechados em contextos ritualizados e espirituais, muitas vezes distantes da maioria das pessoas, estão cada vez mais acessíveis ao público em geral, de forma laica e compreensível. O fato de que mindfulness é praticado por um número cada vez maior de pessoas de diversas religiões, bem como ateus, é um incomensurável benefício advindo de sua laicidade.

Por outro, é necessário que se observe algumas questões importantes para a segurança dos praticantes, pois as práticas de consciência plena não estão totalmente isentas de riscos ou de “efeitos colaterais”, como desconfortos físicos e emocionais, bem como efeitos adversos, como piora nos sintomas de ansiedade e depressão.

Segundo Cebolla, Demarzo, Martins, Soler & Garcia-Campayo, existem alguns fatores que devem ser levados em consideração, ao se iniciar uma prática de mindfulness a fim de evitar alguns riscos desnecessários. São estes: a vulnerabilidade pessoal, o tipo de prática e a qualificação do instrutor(a) ou professor(a).

Algumas características individuais que possam predispor ao risco compõem o aspecto da vulnerabilidade pessoal. Mindfulness não é aconselhável para pessoas em fase aguda de algum transtorno psiquiátrico (depressão, transtorno bipolar, psicose, etc.), bem como para aquelas que não tenham preservadas suas funções neurocognitivas básicas (percepção, atenção, memória, linguagem e funções executivas).

Já os pacientes no início do tratamento para qualquer condição médica, e aqueles com condições psiquiátricas já estabilizadas, necessitam de um acompanhamento terapêutico informado sobre sua inserção no curso, para que o profissional possa estar ciente da intensificação de sintomas e possíveis ajustes no tratamento. É importante salientar que pessoas com restrições de mobilidade ou com outras necessidades especiais (como incapacidade auditiva ou visual) podem tranquilamente encontrar meios adaptados para realizar e incorporar as práticas.

Sobre o tipo de práticas, durante a pandemia vários cursos online estão acontecendo e, antes dela, tantos outros presenciais. Mas saber escolher um tipo de programa mais adequado ao perfil de cada um é também muito importante. Há programas abertos ao público em geral e outros específicos para pessoas com epilepsia, esquizofrenia, depressão e com transtorno de personalidade do tipo “borderline”.

Alguns programas laicos de mindfulness são voltados a iniciantes e possuem práticas menos intensas e mais seguras. Encontros meditativos que exigem muitas horas de práticas diárias, como retiros intensivos, podem predispor pessoas vulneráveis a efeitos colaterais e adversos.

Por fim, a escolha do(a) instrutor(a) ou professor(a) também é fundamental para uma experiência benéfica e segura em um curso de consciência plena. É muito importante que o(a) professor(a) seja certificado, ou seja, tenha completado uma formação em mindfulness por um centro formador reconhecido. Além disso, faz parte da formação do(a) instrutor(a) acompanhar as diretrizes de boas práticas em mindfulness, que, além de outros pontos, exige que o(a) instrutor(a) assuma o compromisso de manter-se praticando regularmente, participe de retiros de práticas e de processos de formação profissional contínua.

 

Mas a prática tem suas limitações, em quais situações o Mindfulness seria insuficiente?

Apesar da sua crescente expansão no ocidente e das pesquisas científicas apontarem diversos benefícios associados às práticas regulares, mindfulness não é panaceia, ou seja, algo que pode curar ou remediar todos os males por si só, substituindo tratamentos psicológicos ou farmacológicos. Mas pode sim estar associado a outros tratamentos e, dependendo do caso, o praticante deve receber o acompanhamento de outros profissionais.

Além disso, ao estarmos mais conscientes dos processos internos e externos, vamos nos dando conta de fatores importantes, que contribuem para a saúde mental e o bem-estar integral, que precisam ser também observados e cuidados, tais como: a qualidade das relações que estabelecemos, uma alimentação saudável, um sono reparador e exercícios físicos. Se descuidamos desses aspectos fundamentais do corpo, da mente e das relações, não só as práticas de mindfulness, mas também a sensação de bem-estar e a saúde podem estar comprometidas.

 

A educação emocional vem tomando mais espaço e crescendo nas escolas. A situação de confinamento é um momento adequado para reconhecer as emoções e aprender a trabalha-las em família? Quais são as particularidades da prática específica para as crianças?

De fato, a educação emocional é algo extremamente importante para que as crianças possam aprender a lidar melhor com as emoções neste período de confinamento, e levar este aprendizado para outros momentos da vida. E mindfulness pode ajudar muito nesse processo.

Umas das coisas mais significativas que nossa equipe NUMI – Núcleo de Mindfulness – aprendeu nos anos de trabalho dentro do contexto da educação, seja nas escolas ou nas famílias, é que as mais bem sucedidas  práticas de consciência plena com crianças acontecem quando o(s) adulto(s) responsável(eis) – professores da escola, pais, mães, avós, cuidadores – vê(em) sentido nas práticas e as desenvolvem de maneira assídua e diligente em sua própria vida.

Em outras palavras, a prática da criança começa com as práticas dos adultos responsáveis. É vendo-os praticando o que chamamos de práticas formais e informais de mindfulness que as crianças vão criando sentido e curiosidade para que possam se juntar a eles também.

Especificamente falando de autorregulação emocional, é importante compreender que os seres humanos não nascem com cérebros e sistemas nervosos completamente desenvolvidos. Nos bebês, a capacidade de autorregulação emocional e de se acalmar está ausente, pois nessa fase o sistema nervoso é ainda imaturo e fisiologicamente incapaz de gerenciar a ativação por um estímulo estressor. É neste ponto que entendemos o papel essencial do cuidador, que atua como “calmante” até o sistema nervoso do bebê amadurecer e poder começar a se autorregular. À medida que as crianças se desenvolvem, adultos e cuidadores ainda desempenham um papel importante na regulação de seus sistemas nervosos.

Ora, se os adultos responsáveis pela criança já desempenham um papel fundamental no desenvolvimento emocional da criança, estando eles conscientes ou não disso, é extremamente oportuno aproveitar este momento de isolamento, que nos deixou mais perto dos nossos filhos e filhas, para nos dedicarmos às práticas de autorregulação emocional em família.

São muitas as possibilidades de práticas para vivenciarmos mindfulness com as crianças. De maneira geral, as práticas têm um caráter mais lúdico e podem começar com crianças de cinco anos, com poucos minutos por dia. Conforme a criança vai crescendo, vai desenvolvendo a capacidade de estar com o corpo mais quieto e atenta por mais minutos.

Há práticas de atenção à respiração, escaneamento corporal, movimentos com consciência plena e caminhada meditativa que são muito efetivas para crianças e adultos e que também podem ser feitas em família. Todas essas práticas promovem maior consciência corporal, que ajuda na autorregulação emocional, e podem trazer maior calma e clareza mental. Há também práticas, chamadas práticas generativas, que promovem intencionalmente emoções ou estados mentais positivos e saudáveis, tais como a gentileza, a generosidade, a gratidão, a amorosidade e a compaixão.

Existem áudios, livros e baralhos de cartas ilustradas disponíveis no mercado hoje, que ajudam a trazer maior clareza aos sentimentos e emoções. O aspecto comum a todos eles é aprender a aceitar todas as emoções que acontecem, sem evitar, julgar ou lutar contra a experiência, desmitificando as emoções e aprendendo a lidar de maneira mais aberta e curiosa com o que acontece normalmente com todas as pessoas.

 

O que recomendaria para quem nunca fez e gostaria de começar agora?

O mais indicado é procurar um centro reconhecido ou um professor(a) de mindfulness certificado(a) e dar início a um curso introdutório de mindfulness, que, neste momento da pandemia, estão acontecendo online. Esses cursos costumam ter a duração de oito semanas, com um encontro semanal de duas horas em média, com a presença do(a) professor(a) e de uma turma de alunos, com a possibilidade de interação entre eles.

No entanto, sabemos que nem sempre é possível se inscrever num curso estruturado, por tantos motivos. Além disso, já existem disponíveis no mercado diversos aplicativos, áudios e livros que favorecem a prática individual.

Para começar, é muito importante levar em consideração a intensidade das práticas. Sugerimos dar início, dedicando-se a elas por poucos minutos (um a cinco minutos), três vezes ao dia, lembrando-se que mindfulness é um treinamento mental.

Pesquisas científicas sugerem que a regularidade é muito efetiva em termos de benefícios colhidos pelas práticas. Assim, dizemos que mais vale praticar por poucos minutos todos os dias, do que se sentar por uma hora uma vez por semana.

Com a regularidade, vamos ganhando experiência e colhendo benefícios que nos conduzem a aumentar a duração dos exercícios. Podemos chegar a 45 minutos diários ou mais, ampliando assim progressivamente os benefícios.

Antes indicar aqui uma prática inicial, é imprescindível dizer algo sobre um mito comum: mindfulness não é deixar a mente em branco ou esforçar-se para não pensar. Ainda que possa haver uma diminuição do ritmo e da quantidade de eventos mentais ocorrendo durante a prática, não se busca um estado de mente vazia ou mente em branco. Esse mito é fonte frequente de frustração por parte de praticantes desavisados.

Nas práticas meditativas de mindfulness, distrações, tais como pensamentos, sons externos, imagens, entre outras, são muito naturais e comuns, cabendo ao praticante, como parte do treinamento, simplesmente dar-se conta de que  distraiu-se e voltar a focar na âncora previamente estabelecida, quantas vezes for necessário e sem julgar-se por ter-se distraído.

Enfim, como uma prática inicial, sugerimos a prática dos três momentos, também chamada de prática da ampulheta. É segura por ser simples, de curta duração e fácil de incluir em nosso dia-a-dia. Ainda que tenha curta duração, em torno de três minutos, seu efeito é significativo e ainda maior se for possível dedicar-se a ela pelo menos três vezes ao dia.

Esta prática pode ser usada entre as atividades, como momentos de pausas restaurativas, bem como em momentos desafiadores, ajudando-nos a estar mais conscientes e menos reativos. Com o tempo, vamos nos acostumando a voltar à respiração e às sensações do corpo, quando começamos a nos sentir mais estressados, desenvolvendo um novo olhar, mais saudável e resiliente sobre a experiência.

Prática dos 3 Momentos

Dedicamos em média um minuto para cada uma das etapas abaixo:

  1. Adotando uma postura cômoda e adequada, se possível de olhos fechados, leve a atenção ao ambiente em que se encontra no momento, observando sons, temperatura e eventuais cheiros do entorno, com uma atitude curiosa, aberta e sem julgamentos.
  2. Passe, então, a observar sua experiência corporal no momento, sentindo o corpo; notando, por alguns instantes, qualquer sensação que se apresente (calor, frio, peso, formigamento, tensão, suavidade, dor, prazer, relaxamento, contração, toque, textura, umidade…). Inclua também a percepção de pensamentos e emoções que eventualmente estejam presentes, não se deixando envolver pelo fluxo de pensamentos e sentimentos, apenas observando-os.
  3. Neste momento, dirija a atenção para a respiração. Por alguns instantes, tome consciência dos movimentos e sensações envolvidos em cada inspiração e cada expiração, deixando o corpo respirar naturalmente. Finalmente, faça o caminho inverso: volte a tomar consciência do corpo como um todo e, em seguida, do ambiente em que se encontra, finalizando a prática com suavidade.

Boas práticas! Que possam estar bem.

REFERÊNCIAS:

Cebolla, Demarzo, Martins, Soler & Garcia-Campayo. Unwanted effects: Is there a negative side of meditation? A multicentre survey. Plos One, 2017.

 

Esta entrevista faz parte do Especial Impactos do COVID-19 para a saúde mental, uma série de entrevistas promovidas pela FUNIBER, que buscam analisar os efeitos, recomendações e ações necessárias para cuidar da saúde mental de diferentes grupos durante e após a pandemia.