“A cidade de Copenhague foi palco de um crime climático, com os homens e mulheres culpados fugindo para o aeroporto com vergonha”. As palavras de Kumi Naiodoo, diretor internacional do Greenpeace, resume a profunda frustração com a Conferência do Clima.
“Fracasso, fracasso e fracasso”. Foram as palavras que mais se ouviram ao término da Conferência do Clima em Copenhague. Um desrespeito com o mundo afirmaram as organizações da sociedade civil, sobretudo as ambientalistas.
Considerada a maior reunião diplomática da história, a 15ª Conferência do Clima (COP-15), frustrou as enormes expectativas que se depositaram sobre ela. Os denominados “líderes mundiais” foram incapazes de chegar a um acordo mínimo. O encontro terminou com um rascunho considerado “covarde” pelas organizações ambientalistas.
O texto não prevê metas obrigatórias de redução de emissões de CO2 até 2020 e ainda ameaça a existência do já superado Protocolo de Kyoto. O documento é vago. Prevê redução de 50% das emissões de CO2 em 2050, porém não fixa meta para 2020 – o objetivo mínimo cogitado por todos antes do inicio da Cúpula. Ao mesmo tempo não detalha os mecanismos financeiros, não prevê acordo sobre a verificação das ações ambientais em países em desenvolvimento e não tem força de lei vinculante.
“Marchamos em Berlim e o muro caiu. Marchamos pela África do Sul e o apartheid caiu. Marchamos em Copenhague – e vamos conseguir um Acordo pra Valer”. O otimismo de Desmond Tutu não se confirmou.
Confirmou-se o desfecho já anunciado na Conjuntura da Semana que postamos há um mês. Na oportunidade destacávamos que um dos eventos mais aguardado do ano estava fadado ao fracasso em função da pouca vontade demonstrada pelos países mais ricos – nos países ricos vive 20% da população mundial, mas eles respondem por 60% das emissões industriais desde 1990 –, sobretudo dos EUA, que em função de sua conjuntura interna foi para a Conferência com uma proposta tímida. Associado a tibieza dos americanos, viu-se muita retórica da União Européia e a costumeira intransigência chinesa.
Outro problema crônico da Conferência: o processo burocrático e complicado de negociação, que exigia o consenso de 192 países. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece a necessidade de uma ampla reforma em seus processos de decisão com vistas ao próximo encontro sobre mudanças climáticas.
Havia uma agenda de consenso sobre os pontos a serem enfrentados na Conferência: 1) a necessidade de se estabelecer metas de emissão de CO2 – a referência, aceita por todos de que a temperatura do planeta não pode subir mais do que 2 graus Celsius até o final desse século; 2) definição de mecanismos de auxílio e proteção aos países mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, como transferência de tecnologias, para facilitar o acesso pelos países em desenvolvimento de tecnologias de baixa emissão e; 3) regras de financiamento – o Fundo do clima –, de como os países ricos, principais responsáveis pelo aquecimento atual ajudariam os países pobres a descarbonizarem sua economia – aqui incluía-se o debate do REDD. Porém, tudo ficou na estaca zero.
Copenhague mais parecia uma torre de Babel. Nada foi acordado e tudo foi postergado. As chances agora de uma nova tentativa de acordo se voltam para a Cidade do México em 2010.
Nada garante que no próximo encontro se chegue a um acordo. O histórico de negociações não aponta para essa perspectiva. A ausência de um compromisso mínimo faz aumentar o número daqueles que já consideram o enfrentamento a causa climática, uma causa perdida.
O chefe da Unidade de Mudanças Climáticas do Centro de Pesquisa da Comissão Europeia, Rank Raes, está entre aqueles que têm dúvidas que um acordo freie o avanço do desastre que se projeta. Segundo ele, nem mais o limite dos 2 graus Celsius é possível: “Seria bonito. Eu colocaria 10 assinaturas, não uma. Uma pena que seja irrealista: os dois graus são um objetivo que não está mais ao nosso alcance. Dizer isso é um ato de honestidade. Assim como é um ato de honestidade dizer que, se não nos mexermos logo, se não fecharmos em poucos anos a torneira dos gases do efeito estufa, não conseguiremos nem parar em três graus”.
A possibilidade real de um aquecimento superior a dois graus Celsius seria devastador. Os cenários acima desse limite considerado suportável prevêem uma mudança drástica na face da Terra:
Dois graus Celsius: As ondas de calor que atingiram a Europa em 2003, deixando milhares de mortos, voltarão a acontecer, todos os anos. O sudeste da Inglaterra vai se acostumar com temperaturas de 40 graus Celsius no verão. Partes da Floresta Amazônica começam a se transformar num deserto, enquanto o aumento de CO2 na atmosfera vai promover a acidificação dos oceanos, tornando improvável a sobrevivência de recifes de corais e milhares de formas de vida marinha. Mais de 60 milhões de pessoas, a maioria na África, sofrerão com aumento de casos de malária.
Três graus Celsius: Um cenário cada vez mais provável. Com tal elevação, o aquecimento global se torna incontrolável, fazendo com que esforços para mitigação passem a ser inviáveis. Milhões de quilômetros da Floresta Amazônica serão queimados, liberando carbono das árvores e do solo, incrementando o aquecimento, talvez até em 1,5 grau Celsius. Desertos vão avançar no sul da África, na Austrália e no oeste dos EUA. Bilhões de pessoas serão forçadas a abandonar suas terras, em busca de água e alimento. Na África e no Mediterrâneo, a oferta de água vai diminuir entre 30% e 50%. No Reino Unido, secas no verão serão seguidas por enchentes no inverno. A elevação do nível do mar vai causar o desaparecimento de países-ilha, e também de lugares como Nova York, Flórida e Londres.
Quatro graus Celsius: Cenário possível, com um acordo fraco. Nesse estágio, o permafrost (solo congelado) do Ártico se torna grande ameaça. Metano e carbono aprisionados no solo serão liberados na atmosfera. Ainda no Ártico, a cobertura de gelo desaparecerá, causando a extinção do urso polar e outras espécies nativas. Na Antártica, o degelo vai se acelerar, incrementando a elevação do nível do mar, fazendo com que diversas ilhas fiquem submersas. Itália, Espanha, Grécia e Turquia podem virar desertos. A região central da Europa passa a ter temperaturas médias de 50 graus Celsius no verão, típicas de desertos.
Cinco graus Celsius e além: Um pesadelo altamente improvável. Com um aumento médio de cinco graus, as temperaturas na Terra vão ficar tão quentes quanto àquelas de 50 milhões de anos atrás. No Ártico, as temperaturas subirão bem mais do que a média global — acima de 20 graus Celsius —, significando que a região ficará sem gelo o ano inteiro. A maior parte das regiões tropicais, subtropicais e mesmo as regiões de latitudes média se tornarão inabitáveis por causa do calor. A elevação do nível dos mar fará com que a maioria das cidades costeiras do planeta tenha que ser abandonada. A população humana será drasticamente reduzida.
Corrobora esse cenário, recente estudo que afirma que o aquecimento global pode ser maior que o esperado.
É a possibilidade desses últimos cenários que faz com que Leonardo Boff afirme que rumamos para o desastre. Segundo ele, “a humanidade penetrou numa zona de treva e de horror. Estamos indo ao encontro do desastre. Anos de preparação, dez dias de discussão, a presença dos principais líderes políticos do mundo não foram suficientes para espancar a treva mediante um acordo consensuado de redução de gases de efeito estufa que impedisse chegar a dois graus Celsius. Ultrapassado esse nível e beirando os três graus, o clima não seria mais controlável e estaríamos entregues à lógica do caos destrutivo, ameaçando a biodiversidade e dizimando milhões e milhões de pessoas.”
Lições de Copenhague
Na análise de Boff, Copenhague nos ensina duas lições: “A primeira é a consciência coletiva de que o aquecimento é um fato irreversível, do qual todos somos responsáveis, mas principalmente os países ricos. E que agora somos também responsáveis, cada um em sua medida, do controle do aquecimento para que não seja catastrófico para a natureza e para a humanidade. A consciência da humanidade nunca mais será a mesma depois de Copenhague. Se houve essa consciência coletiva, por que não se chegou a nenhum consenso acerca das medidas de controle das mudanças climáticas?”
Aqui surge a segunda lição, diz Boff: “O grande vilão é o sistema do capital com sua correspondente cultura consumista. Enquanto mantivermos o sistema capitalista mundialmente articulado será impossível um consenso que coloque no centro a vida, a humanidade e a Terra e se tomar medidas para preservá-las. Para ele centralidade possui o lucro, a acumulação privada e o aumento de poder de competição. Há muito tempo que distorceu a natureza da economia como técnica e arte de produção dos bens necessários à vida. Ele a transformou numa brutal técnica de criação de riqueza por si mesma sem qualquer outra consideração. Essa riqueza nem sequer é para ser desfrutada mas para produzir mais riqueza ainda, numa lógica obsessiva e sem freios”.
O ambientalista Henrique Cortez, na mesma trilha de Boff, destaca que Copenhague fracassou e continuará fracassando porque “ninguém colocou em debate o atual modelo de desenvolvimento, predatório por definição. Sem esta discussão, continuaremos discutindo como tratar câncer com placebo”, diz ele.
“Enquanto mantivermos o sistema capitalista mundialmente articulado será impossível um consenso que coloque no centro a vida, a humanidade e a Terra e se tomar medidas para preservá-las”, diz Boff. O capitalismo com sua ideologia liberal, assim como certa leitura dogmática do marxismo repousam sobre a noção de um progresso infinito e que repetem exaustivamente o mantra do crescimento. Essas correntes trabalham com a idéia de que os recursos naturais do planeta são finitos e que o modelo econômico baseado na produção e no consumo infinito. Esse pensamento tornou-se anacrônico, já não é mais possível.
Estudos comprovam que a pegada ecológica – o impacto do consumo sobre o planeta está muito forte. A pegada usa como unidade o hectare global, que, como o hectare normal, tem 10 mil metros quadrados, mas mede a capacidade de produção de recursos naturais de toda a superfície terrestre – o que inclui áreas de cultivo, florestas, rios e mares, mas não desertos e geleiras.
No mês passado, a ONG americana Global Footprint Network divulgou um índice atualizado com a pegada ecológica do Brasil e de outros 150 países, baseado em dados das Nações Unidas de 2006. De acordo com ele, cada brasileiro tem uma pegada de 2,25 hectares globais, ou seja, a produção de tudo o que consome precisa de 22,5 mil metros quadrados. A média brasileira é um pouco menor que a mundial, segundo a qual cada pessoa na Terra consome 2,6 hectares globais por ano. Mas, e aí está o problema, a Global Footprint calcula que o total disponível de área produtiva no mundo, a chamada biocapacidade, é de apenas 1,8 hectare global por pessoa. Além disso, a biocapacidade vem diminuindo – seja pelo aumento da população ou pela degradação de solos e mares.
Isso significa que os 6,6 bilhões de habitantes do mundo consomem juntos quase 1,5 planeta Terra por ano, com base nos dados de 2006. Ou seja: a população hoje usa em 1 ano recursos que o planeta só consegue repor em 18 meses. No relatório de 2008, baseado em dados da ONU de 2003, a humanidade consumia 1,3 planeta.
“É como se o mundo fosse uma caixa d’água que é abastecida por uma torneira e fornece água por outra, mas a quantidade de água que sai é muito maior do que a que entra”, compara o coordenador do Programa de Educação para Sociedades Sustentáveis da entidade ambientalista WWF-Brasil, Irineu Tamaio. “Por enquanto, a caixa ainda tem água, mas muito em breve ficará vazia. Nós já estamos roubando recursos das próximas gerações.”
Apenas dez países são responsáveis por 50% da pegada ecológica mundial, e o Brasil está entre eles. No topo da tabela estão Emirados Árabes e Qatar. “Os dois são grandes exportadores de petróleo por um lado e, por outro, importam praticamente tudo o que consomem, porque tem uma área pequena e pouco produtiva para dar conta do seu consumo interno”, explica a diretora de Estratégias da Global Footprint, Jennifer Mitchell. Isso faz com que cada morador desses países tenha pegadas ecológicas próximas de 10 hectares globais. “É diferente dos Estados Unidos, que têm uma das maiores biocapacidades do mundo, mas pegada muito alta por causa da mentalidade consumista da sociedade.”
A pegada dos EUA supera em mais de três vezes a média mundial: é de 9,4 hectares globais (ou mais de 11 Maracanãs) per capita. Assim, se toda a população do mundo tivesse os hábitos de consumo dos americanos, seriam necessários 5 planetas para manter seu estilo de vida e os recursos naturais provavelmente se esgotariam em menos de 20 anos. Jennifer ressalta que, com os mesmos padrões de conforto e bem-estar, os europeus conseguiram atingir uma pegada ecológica de 5 hectares globais per capita, a metade da americana. Cada um pode medir a sua pegada ecológica.
A crise climática e o fracasso em Copenhague anunciam que precisamos de um novo paradigma civilizacional porque o atual chegou ao seu fim e exauriu suas possibilidades. Necessitamos agora de uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais.