Presente na maioria das dietas ocidentais, o leite sempre foi considerado um alimento saudável e completo para todas as idades. A indústria dos laticínios – com o aval dos profissionais de saúde e nutrição – ajudou a propagar a ideia de que o leite e seus derivados eram a principal fonte de cálcio, rico em proteínas e vitaminas A, B1 e B2. Afinal, quem não lembra da publicidade com celebridades e modelos com bigodes brancos de leite? Na mesa dos portugueses e brasileiros, não pode faltar no café da manhã o tradicional café com leite, já os norte-americanos não dispensam o trivial prato de cereais com leite pela manhã. Contudo, há alguns anos o conceito de alimento benéfico deixou de ter consenso na comunidade médica. Vários especialistas são contra o consumo do leite de vaca e ainda argumentam que o leite pode ser a causa de várias doenças e alergias como otite, dermatite, aumento de gordura abdominal, aumento na formação de muco, gastrite, refluxo, obstipação intestinal (intestino preso), entre outras.

O pesquisador português Pedro Bastos que faz mestrado em Nutrição em Dietética pela Fundação Universitária Iberoamericana (Funiber) é um dos que criticam o consumo do leite de vaca. Ele está escrevendo uma tese sobre os efeitos do leite na individualidade bioquímica e, baseado em vários estudos, chegou à conclusão de que o leite de vaca não é um alimento adequado para o consumo humano. Bastos argumenta que após a amamentação, o homem é o único mamífero que continua consumindo leite, e por isso desenvolve alguns problemas de saúde. “Só após a revolução agrícola – há cerca de 10.000 anos –, pela domesticação dos animais, é que o consumo de lacticínios tornou-se possível. O leite é, assim, um alimento relativamente recente na alimentação do ser humano (cujo genoma não sofreu alterações significativas nos últimos 10.000 anos), o que explica por que cerca de 70% da população adulta mundial apresenta intolerância à lactose – dificuldade ou possibilidade de digerir o açúcar do leite – que causa diversos efeitos adversos de ordem gastrointestinal como flatulência, diarreia, dor e desconforto abdominais”.

Bastos cita outros problemas de saúde causados pelo leite. Na sua análise, encontrou vários estudos a mostrar que lacticínios, como leite, iogurte e queijo fresco, apesar de possuírem um índice glicêmico baixo (não provocam um aumento significativo da glicemia), aumentam muito a libertação de insulina pelo pâncreas, o que, segundo ele, pode causar resistência à insulina, que está na origem de várias problemas de saúde como síndrome metabólica (inclui diabetes tipo 2, hipertensão, aumento dos triglicerídios, diminuição do colesterol das HDL e obesidade abdominal), síndrome do ovário policístico, alguns tipos de cancro (próstata, mama e cólon), miopia e acne (que em 2 estudos epidemiológicos estava associada a maior consumo de lacticínios). Muitos defensores do leite não aceitam isso e citam estudos que associam o consumo de leite magro à menor incidência de diabetes tipo 2 e síndrome metabólica, mas esquecem que existem outros estudos epidemiológicos que não revelam associação e outros que mostram o contrário.

E o único estudo de intervenção dietética (em crianças) existente revelou que a elevação do consumo de leite provocou resistência à insulina. Bastos menciona que o mais grave talvez seja a recente descoberta da beta-celulina (BTC). Ele explica que a BTC é um fator de crescimento presente no leite bovino, que sobrevive à pasteurização, processamento (sendo também encontrada no queijo) e ao processo digestivo, tem a capacidade de entrar na circulação, através do receptor de EGF (Fator de crescimento epidérmico) existente nas células epiteliais do intestino e com o qual tem maior afinidade que o próprio EGF. Ao entrar na circulação sistêmica, pode ligar-se ao receptor de EGF (EGF-R) que existe em diversas células epiteliais e aumentar a sinalização desse receptor.

No caso de diversos tipos de cancro, (mama, cólon, próstata, ovários, pulmões, pâncreas, bexiga, estômago, cabeça e pescoço), sabe-se que há um aumento do número de EGF-R e da sinalização dos mesmos e que existem já ensaios clínicos de fase II para fármacos que bloqueiam o receptor e a sua sinalização. Apesar de ainda não terem sido realizados estudos sobre leite, BTC e câncer em humanos, é já conhecido o mecanismo e existem estudos epidemiológicos que ligam o consumo de lacticínios a alguns desses tipos de cancro (próstata, ovários, pulmões, estômago e pâncreas). “Além de cancro, a BTC poderá causar outros problemas. Por exemplo, pacientes com Parkinson apresentam alterações dos receptores referidos (EGF-R) no córtex pré-frontal e no estriato, o que afeta os neurônios onde se produz a dopamina e existem estudos epidemiológicos a associar o consumo de leite a esta doença”, afirma o pesquisador.

A nutricionista Daniela Jobst que está a desenvolver uma tese de mestrado sobre constipação intestinal crônica como efeito da alergia ao leite de vaca pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), concorda com o pesquisador português. De acordo com ela, o leite de vaca é um dos alimentos que mais causa alergia. “Essa relação até já é feita pela maior parte dos profissionais da área da saúde atentos às causas das doenças, porém costuma-se ligar mais a intolerância à lactose, um tipo de açúcar natural que pode provocar reações adversas em quem não tem ou produz pouca lactase, enzima que digere a substância. Sem dúvida, esta intolerância é comum e pode desencadear transtornos funcionais gastrointestinais como náuseas, diarreia e cólicas. A maior relação dos derivados de leite com as alergias tardias deve-se ao fato do organismo não digerir a beta-lactoglobulina e a caseína (proteínas existentes no soro leite)”, afirma. Os principais sintomas para quem desenvolve hipersensibilidade ao leite são relacionados ao intestino, azia, gastrite, sensação de “enchimento”, gases e alergias.

A nutricionista ressalta que os sintomas não se manifestam logo após o consumo da bebida, é chamada de alergia tardia, pois pode ocorrer horas ou dias mais tarde. Para detectar se a pessoa é hipersensível ao leite, é necessário fazer exames de sangue ou fazer dietas de exclusão, na qual os alimentos são retirados da alimentação e se descobre quais deles faz mal. A nutricionista Sandra Nogueira do Instituto Quantum também é contra o consumo de leite de vaca pelos seres humanos. De acordo com ela, as células de defesa atacam betalactoglobulina como se fossem um vírus, bactérias ou fungos, iniciando assim, uma reação alérgica, podendo provocar mais tarde, otites, sinusites, rinites, amigdalites e bronquites. Esta alergia gera inflamação das mucosas do ouvido, nariz, garganta e pulmão. Mais tarde, aparecem problemas cutâneos, eczemas, hiperatividade, enxaquecas, TPM e até depressão.

Leite e osteoporose

As controvérsias não param por aí. Outros especialistas defendem o consumo do leite e dizem que é um alimento indispensável para a saúde dos ossos. “O leite e seus derivados são os únicos alimentos capazes de fornecer cálcio na quantidade suficiente para o ser humano. Para se ter ideia, a couve seria, depois do leite e derivados, o segundo melhor alimento fonte de cálcio, porém uma mulher de 50 anos teria que consumir o equivalente a um quilo de couve por dia para atingir a recomendação de cálcio, uma quantidade inviável do ponto de vista prático”, explica Sergio Bontempi Lanzotti, médico reumatologista especialista em densitometria óssea. Ele ressalta que é importante ingerir proteínas por outras fontes, como carnes e ovos, porém o principal prejuízo na diminuição da ingestão de leite está relacionado à carência de cálcio.

Segundo ele, as fontes nutricionais de cálcio na dieta da população são, em maioria, obtidas por meio da ingestão de leite e derivados. Estudos científicos mostram que populações parecidas, mas que diferem em relação à ingestão de cálcio, têm massa óssea (formação de osso) e taxas de fraturas diferentes, levando a uma relação positiva entre massa óssea e ingestão de cálcio. Isso quer dizer que, quanto maior a ingestão de cálcio, melhor a formação de osso. Em uma análise de 139 artigos científicos publicados entre 1975 e 2000, relacionando a ingestão de cálcio e a saúde de osso, 50 de 52 estudos encontraram um melhor equilíbrio ósseo, maior ganho de osso durante o crescimento, perda óssea reduzida e risco diminuído de fracturas quando a ingestão de cálcio era maior.

Um estudo desenvolvido por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) coordenado pelo reumatologista Marcelo Pinheiro sobre ingestão de nutrientes relacionados à saúde óssea em mulheres e homens brasileiros analisou o cardápio de 2.344 adultos de todas as regiões do país. O foco foi à prevenção da osteoporose. O grupo de pesquisadores chegou à conclusão de que é preciso incentivar o consumo de boas fontes de nutrientes como cálcio, magnésio e as vitaminas D e K e, assim, afastar o risco crescente da osteoporose. Apesar de ser mais frequente entre mulheres, segundo estimativa da OMS (Organização Mundial de Saúde), a enfermidade já atinge um em cada cinco homens com mais de 50 anos no mundo. Um dado relevante levantado na pesquisa mostrou que os homens ingerem uma quantidade bem menor desses nutrientes comparados às mulheres.

É por isso que os casos de osteoporose masculina, em Portugal, devem aumentar. Cerca de 15% dos entrevistados já haviam sofrido fracturas e nem suspeitavam que o problema estivesse ligado à fragilidade dos ossos. Dos entrevistados, 70% eram mulheres e 30% eram homens acima de 40 anos. “Não podemos afirmar que o baixo consumo de cálcio é a causa da osteoporose, porque há outros factores que influenciam o desenvolvimento da doença como histórico familiar, baixa estatura e peso, tabagismo, alcoolismo, entre outros. Contudo o consumo de leite e derivados é essencial para a formação e fortalecimento dos ossos”, conclui o reumatologista. Ele diz que o consumo só deve ser evitado para aqueles que tiverem alergias ou intolerância à lactose. Bastos rebate a afirmação de que o leite é a essencial para prevenir a osteoporose. “É importante esclarecer que o cálcio é apenas um dos nutrientes necessários para a prevenção da osteoporose”.

Um desses nutrientes é o magnésio, cuja deficiência que pode ser causada por um consumo elevado de cálcio, o que pode diminuir a densidade mineral óssea e aumentar o risco de fracturas. O ideal é que a quantidade de cálcio represente, no máximo, o dobro da de magnésio. Ora, no leite e derivados, a quantidade de cálcio chega a ser 10 vezes superior a de magnésio. Também deve ser esclarecido que tão importante como a quantidade de cálcio ingerida é a quantidade de cálcio excretada e é sabido que alimentos com carga ácida positiva (libertam mais ácidos que bases) aumentam a excreção de cálcio e de magnésio. Os lacticínios, em especial os queijos, apresentam uma elevada carga ácida, pelo que não será de estranhar que, apesar de existirem vários estudos de curto prazo a mostrar que uma ingestão elevada de lacticínios pode beneficiar a saúde óssea, os estudos de longo prazo não mostram isso e um deles, o famoso Nurse´s Health Study realizado pela Universidade de Harvad (EUA) com enfermeiras envolveu mais de 77 mil mulheres e foi verificado que a ingestão de dois ou mais copos de leite por dia estava associado a uma maior incidência de fracturas da anca.

Ele lembra que o Japão, China e Gâmbia são países onde se regista um baixo consumo de laticínios e cálcio, mas onde a incidência de fracturas é bem menor que na Europa e EUA, que ingerem mais lacticínios e cálcio. E, apesar de os lacticínios conterem mais cálcio que os vegetais, estes (em especial os brócoli e couve) também contêm esse mineral e apresentam uma taxa de absorção do mesmo semelhante à dos lacticínios e a proporção entre o cálcio e o magnésio existente nesses vegetais é mais próxima do ideal.”, argumenta. Para desmistificar a ideia que leite é essencial para a saúde óssea, ele cita os homens do período pré-histórico que não consumiam leite depois que desmamavam e assim mesmo tinha uma densidade mineral óssea igual ou superior a do homem atual. “Provavelmente, isso se devia à exposição solar, que permite a síntese de vitamina D, o exercício físico regular e intenso e ao consumo elevado de vegetais”, avalia.

Polêmica

Outro defensor do leite é o médico nutrólogo Edson Velardi Credidio, diretor da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia). Ele mostra vários dados que comprovam os benefícios do leite como uma análise de diversos trabalhos, recém-publicada no periódico científico americano The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, que mostra uma associação entre o consumo de alimentos ricos em cálcio e a diminuição do risco da síndrome. Ele vê com desconfiança estudos que dizem que o leite faz mal. “Hoje, infelizmente, estamos passando por transformações em que as ‘informações’, às vezes rotuladas de científicas, são simplesmente ‘encomendadas’ e, muitas vezes, não sabemos se certas pesquisas são ou não procedentes ou fidedignas ou se estão a responder a uma reivindicação de algum órgão com certos objetivos”, critica. Para o médico, os profissionais de saúde podem estar enganados ao acusar o leite como sendo a causa de várias doenças. “Se uma criança espirra, tem otite ou tosse, alguns médicos já dão o diagnóstico que é alergia à lactose, e crucificam o pobre do leite, retirando-o da alimentação do paciente. Quem fala mal do leite deveria estudar e se instruir mais antes de lançar estes conceitos errados que só prejudicam os seres humanos”, alfineta.

Unanimidade do leite materno

Todos os profissionais são unânimes ao afirmar que o melhor alimento para o bebê até o primeiro ano de vida é o leite materno. A sua composição é específica e subtilmente modificada de acordo com a necessidade do bebê. Além de rico em gordura, proteína, carboidratos, minerais, vitaminas, enzimas e imunoglobulinas, o leite materno protege contra várias doenças, infecções e alergias e possui factores de crescimento que aceleram a maturação intestinal, também prevenindo alergias e intolerâncias. De acordo com a nutricionista Daniela Jobst, o leite de vaca também contém fatores imunológicos de ótima qualidade, mas para o bezerro, pois esses factores só funcionam para a mesma espécie. “Mesmo que alguns destes fatores possam funcionar, serão destruídos pela armazenagem e fervura do leite”, explica. Ela cita um estudo em Cambridge, Reino Unido, com 926 bebês que foram acompanhados por cinco anos. Foi demonstrado que quanto maior o tempo de consumo do leite materno, maior o nível de mineralização óssea aos cinco anos, com uma diferença de até 38% em relação aos que receberam fórmulas infantis, apesar das mesmas terem uma proporção maior de cálcio. Para mães que não têm leite ou depois do desmame, ela indica o leite de soja hipoalergênico, ou seja, de fácil digestão por não ter as proteínas alergênicas do leite como caseína e beta-lactoglubulina.

FONTE: Musculação-pt