Continua correndo no Congresso o projeto que visa a não obrigatoriedade de rotulagem dos produtos que contêm ingredientes geneticamente modificados. Diversos órgãos, principalmente ligados ao direito do consumidor, lutam para que a lei que exige essa informação no rótulo dos produtos, aprovada em 2004, continue em vigor. “As consequências de uma eventual perda do direito à informação são graves e várias”, indica Andrea Salazar, consultora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, Andrea falou das possíveis consequências que devem ocorrer caso o projeto seja aprovado pelos senadores, critica o que está em jogo e, ainda, analisa o trabalho da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio).
“Um exemplo muito claro disso aconteceu em 2007, quando a CNTBio deu a liberação dos três primeiros eventos de milho transgênicos no Brasil, um da Monsanto, um da Bayer e um da Syngenta. O IBAMA e a ANVISA apresentaram recursos técnicos contra a decisão da CNTBio, dizendo que esses eventos não poderiam ser liberados tanto pelos aspectos ambientais quanto de saúde, porque eles não haviam sido adequadamente avaliados. Temos dois órgãos importantes do governo federal, dizendo que os eventos não poderiam ser autorizados, mas eles foram, porque o Conselho Nacional de Biosegurança, que é um conselho de ministros, por maioria de votos, entendeu por bem aprovar”, apontou ela.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que consequências podem ocorrer com a possível perda do direito de saber se o alimento que está consumindo contém ou não ingredientes transgênicos?
Andrea Salazar – Nós esperamos que isso não aconteça, que o Congresso mantenha o compromisso que assumiu em 2005, quando aprovou a nova lei de biossegurança que garante o direito das pessoas saberem se um produto é ou não transgênico. Esse é um direito também garantido pelo Código de Defesa do Consumidor. As consequências de uma eventual perda do direito à informação são graves e várias: a primeira delas é um direito de ordem pessoal, os cidadãos vão perder a possibilidade de saber o que estão comendo e de escolher. Muitos de nós, segundo pesquisas, demonstram que a maioria da população quer saber se um alimento é ou não transgênico para exercer o seu direito de não comê-lo. Então, negar esse direito fere essa vontade legítima do cidadão brasileiro. Essa é uma consequência muito grave.
A segunda consequência diz respeito ao direito dos agricultores. Sabemos que hoje existe, no Brasil e em outras partes do mundo, a rejeição aos alimentos transgênicos e, portanto, um mercado privilegiado e importante para os agricultores que cultivam alimentos não transgênicos. Essa vantagem comercial, que é extremamente significativa para o Brasil, pode se perder na medida em que não houver rotulagem. Isso porque vai haver uma segregação, uma mistura de grãos transgênicos e não transgênicos, impedindo esse ganho maior do agricultor que optar sua produção livre de sementes geneticamente modificadas.
E tem outro aspecto relativo à saúde pública que precisa ser considerado nessa decisão. Existe hoje uma comissão técnica nacional de biossegurança no Brasil que avalia os alimentos transgênicos. Ela tem que analisar esses alimentos antes de liberá-los. A avaliação que é feita é absolutamente precária. As associações da sociedade civil assistiram a forma como a CNTBio não avalia profundamente os riscos dessas espécies. Por isso, é muito importante ter essa informação para poder monitorar ao longo do tempo. Mesmo que a CNTBio avaliasse profundamente e corretamente esses alimentos, nada impede que alguns riscos não sejam avaliados.
IHU On-Line – O que está por trás desse projeto de lei?
Andrea Salazar – Eu entendo que, por trás dessa intenção, que tem tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, onde há projetos no sentido de inviabilizar a rotulagem, também existe a vontade de biotecnologia de expandirem a produção de transgênicos no país. Então, basicamente, são as empresas de biotecnologia, uma parcela dos agricultores que optaram por plantar transgênicos e parte da indústria alimentícia que também não querem informar o consumidor com medo da rejeição que seus produtos podem sofrer.
IHU On-Line – Como você vê o aumento no uso de sementes geneticamente modificadas na produção de milho aqui no Brasil?
Andrea Salazar – Saiu uma notícia recentemente no jornal Estado de São Paulo com números que são contestáveis. Tivemos a primeira safra de milho, e o número apresentado é de uma consultoria privada, então não podemos nos basear nesses dados. Mas, sem dúvida, aconteceu uma primeira safra, e a tendência é de que ocorram vários eventos de milho aprovados, e é possível que haja um aumento. Esse fato é extremamente alarmante, é sério e perigoso pelo risco de contaminação. O estado do Paraná, por meio de uma pesquisa, já demonstrou que a contaminação realmente acontece em pequenas distâncias, ao contrário do que a CNTBio diz, uma vez que aprovou uma norma bastante fraca e inadequada para impedir a contaminação. O aumento da produção de milho transgênico vai afetar diretamente o plantio de cultivos não transgênicos.
IHU On-Line – Que consequências isso tem na mesa do consumidor?
Andrea Salazar – A contaminação é um fator grave para o produtor que faz um grande esforço para manter sua produção livre de transgênicos e garantir um mercado para sua produção não transgênica. A consequência é muito problemática para o consumidor, porque ela vai dificultar a existência de uma produção em boa quantidade para chegar às mesas dos consumidores. Nós corremos o risco de, mesmo querendo o milho não transgênico, ainda que essa informação conste nos rótulos, ainda assim, não conseguir encontrá-lo pelo nível de contaminação que pode acontecer nos campos.
IHU On-Line – No caso da soja, quase 100% da produção dos EUA e da Argentina é transgênica. O Brasil é um dos únicos grandes fornecedores do produto convencional. Ainda é possível proteger esse mercado?
Andrea Salazar – Nossas organizações lutam muito pelas questões de saúde, meio ambiente, informação, mas, sem dúvida alguma, há uma grande vantagem para o Brasil no sentido econômico. Dos três grandes produtores de soja, o Brasil é o único que mantém uma produção de quantidade ainda significativa de soja não transgênica. Há grandes produtores que já perceberam isso e estão mantendo sua produção de soja livre de transgênico para exportação. Tem uma associação que foi criada inclusive para proteger esse mercado, porque grandes produtores estão sentindo como podem ganhar, ter vantagem sobre os competidores. É absolutamente lamentável que o governo brasileiro não veja isto e continue apostando nos transgênicos como adequados aqui no país.
IHU On-Line – Você indica que as normas editadas pela CNTBio não são suficientes hoje. Por quê?
Andrea Salazar – Não são suficientes mesmo. Eu comentei uma delas que é a norma de contaminação, de coexistência de milho convencionais e não convencionais. Ela é absolutamente inadequada porque prevê uma distância de 20 metros, com bordadura, ou de 100 metros para a separação entre uma plantação transgênica e uma não transgênica. Falando de milho, isso é absolutamente insuficiente, e a contaminação vai acontecer. E nós percebemos que a insuficiência das normas e dos procedimentos da comissão para fazer a avaliação mostra que o que existe é uma vontade de liberar novos eventos transgênicos. Essa é a grande meta da maioria dos cientistas que compõem hoje a CNTBio. Um exemplo muito claro disso aconteceu em 2007, quando a CNTBio liberou três primeiros eventos de milho transgênicos no Brasil, um da Monsanto, um da Bayer e um da Syngenta. O IBAMA e a ANVISA apresentaram recursos técnicos contra a decisão da CNTBio, dizendo que esses eventos não poderiam ser liberados tanto pelos aspectos ambientais quanto de saúde, porque eles não haviam sido adequadamente avaliados. Temos dois órgãos importantes do governo federal, dizendo que os eventos não poderiam ser autorizados, mas eles foram porque o Conselho Nacional de Biossegurança, que é um conselho de ministros, por maioria de votos, entendeu por bem aprovar. Fica claro, com isso, a conduta do governo em promover a rápida liberação de transgênicos sem se preocupar com as questões de saúde e meio ambiente.
IHU On-Line – A lei de rotulagem de alimentos está em vigor desde 2004. Como você avalia esses cinco anos da lei?
Andrea Salazar – O decreto 4680 garante a rotulagem bastante adequada. Ele não exige no limite da detecção, mas só a partir de 1% e, ainda assim, é bastante positivo porque garante a informação mesmo quando não for detectável no produto final. Na prática, esse decreto não está sendo adequadamente cumprido. Percebemos, pela produção de soja transgênica que existe no país, que há uma variação de estimativa em torno de 40% e 60%, ainda que parte vá para o mercado externo, o percentual da soja que fica no país é significativo para não encontrarmos produtos rotulados no mercado. Isso mostra uma falta de comprometimento por grande parte da indústria alimentícia. Além disso, falta fiscalização adequada do governo federal. Se o Ministério da agricultura não fiscalizar rigorosamente o campo e garantir que dali saia a produção com a documentação adequada, não tem como essa fiscalização ser feita na outra ponta. Então, há uma grande omissão do governo federal no tocante à fiscalização. Acredito que o grande responsável por essa omissão é o Ministério da Agricultura.